A Septuaginta e o Novo Testamento (Stephen D. Cook)

Campus Teológico
7 min readApr 27, 2023

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Stephen D. Cook, Ph.D, professor de várias unidades de Hebraico e Estudos Bíblicos na Universidade de Sydney. Seus principais interesses são: humor, sátira e paródia na Bíblia; Profeta Jonas, que inclusive foi sua tese de doutorado e é o seu principal interesse em termos de pesquisa; comédia, tragédia e o problema da teodiceia; e os métodos de ensino de Jesus.

“Está escrito” — Citações do Antigo Testamento no Novo Testamento [Parte 1]

Há um equívoco popular de que os primeiros cristãos usaram a tradução grega da Bíblia hebraica como suas Escrituras, e que todas as citações do ‘Antigo Testamento’ no Novo Testamento são dessa tradução grega, comumente conhecida como “A Septuaginta”.¹ Em textos posteriores, planejo examinar algumas citações que provavelmente foram extraídas diretamente do hebraico (então traduzidas para o grego pelo escritor do Novo Testamento) ou de alguma outra fonte, mas primeiro lidarei com algumas das citações que são provavelmente da Septuaginta. Meu propósito é dar uma visão geral de algumas das dificuldades que enfrentamos quando a citação do Novo Testamento não coincide com o que encontramos em nossas próprias Bíblias e fornecer algumas explicações de por que isso acontece (e talvez algumas soluções).

Neste texto, examinarei apenas uma citação que ilustra bem os problemas. Durante a reunião da igreja primitiva comumente conhecida como “o Concílio de Jerusalém” (Atos 15.1–35), Tiago cita “as palavras dos profetas” (vv. 15–18), especificamente de Amós 9.11–12. Esta citação está mais próxima da Septuaginta (LXX) do que do Texto Massorético Hebraico (TM)², embora na verdade existam onze diferenças entre a versão em Atos e a LXX³.

As diferenças mais significativas são destacadas pelas palavras sublinhadas abaixo:

Atos 15:15–18

“Depois disso voltarei,
e reconstruirei a morada de Davi, que está caída;
das suas ruínas a reconstruirei,
e eu vou configurá-lo,
para que todos os outros povos possam buscar o Senhor
sim, todos os gentios sobre os quais meu nome foi invocado.
Assim diz o Senhor, que desde os tempos antigos tem dado a conhecer estas coisas”.

Amós 9:11–12

Naquele dia eu vou levantar
a tenda de Davi que caiu,
e reparar suas brechas,
e erguer suas ruínas,
e reconstruí-lo como nos dias antigos;
a fim de que eles possam possuir o remanescente de Edom
e todas as nações que são chamadas pelo meu nome,
diz o Senhor que faz isso.

A diferença é realmente muito importante no contexto do Concílio de Jerusalém porque foram especificamente as palavras “todos os gentios sobre os quais meu nome foi invocado” para as quais Tiago estava apelando ao aceitar os gentios na igreja. No entanto, essas palavras não estão no texto hebraico, embora estejam na Septuaginta. Como, quando e por que eles foram alterados? Existem várias possibilidades:

  1. O tradutor que traduziu o hebraico para o grego (a LXX) cometeu um erro, ou alguns erros, ao ler o hebraico e, portanto, fez uma tradução errada que Tiago então usa.
  2. O tradutor estava usando um texto hebraico diferente daquele que eventualmente se tornou o Texto Massorético (os estudiosos chamam esse texto ‘original’ usado para a tradução de Vorlage). Nesse caso, deve ter havido pelo menos duas versões diferentes do hebraico de Amós na época em que a LXX foi traduzida. Isso é possível, e temos boas evidências manuscritas para indicar que havia diferentes textos hebraicos circulando no primeiro século E.C., mas qual texto então seria mais fiel ao texto mais antigo ou ‘original’?
  3. O tradutor alterou deliberadamente as palavras para dar um significado diferente por razões teológicas.

Para os cristãos que acreditam na ‘inerrância’ da Bíblia, qualquer uma dessas possibilidades representa um problema: qual texto é ‘inspirado’, o texto hebraico massorético usado para traduzir o Antigo Testamento para o português (o que pode incluir erros se acreditarmos que o NT coloca seu selo de aprovação em uma versão alternativa), ou a tradução da Septuaginta grega de um texto hebraico diferente (que agora está perdido), usado por Tiago e citado no Novo Testamento? Ou o TM está certo e a LXX e o NT estão errados, ou o LXX e o NT estão certos e o TM está errado. Você percebe o problema?

Então, como poderia um tradutor ou copista escriba cometer um erro em primeiro lugar? Como “para que possuam o restante de Edom” se torna “todos os gentios possam buscar [o Senhor]”? Aqui está o texto hebraico dessas palavras como elas aparecem no TM (sem os pontos vocálicos, que foram adicionados posteriormente pelos massoretas entre os séculos 7 e 10 EC):

למען יירשו את־שארית אדום,

A diferença reside principalmente em duas palavras (destacadas acima). A palavra hebraica para ‘Edom’ é אדום e o som ‘o’ é representado pela letra ו. Estritamente falando, o hebraico bíblico escrito é consonantal, e a maioria das vogais foi acrescentada muito mais tarde pelos massoretas. No entanto, a letra ו é uma das quatro letras conhecidas como ‘Matres lectionis’, que também eram usadas para indicar vogais, e durante o período bíblico uma palavra podia ser escrita com ou sem ela. É possível que em alguns manuscritos a palavra para ‘Edom’ tenha sido escrita אדם. Agora, isso apresenta um problema, porque é a mesma palavra que ‘humanidade’ e ‘Adão’. Na maioria dos casos, não há problema porque o contexto determinará qual das três palavras se refere (embora esse seja precisamente o tipo de problema que fez com que os massoretas posteriormente acrescentassem marcas para indicar as vogais e evitar a confusão). Portanto, agora temos duas possibilidades de como ‘Edom’ se tornou ‘humanidade’ (ou gentios): o manuscrito a partir do qual o tradutor da LXX estava trabalhando tinha אדם sem a vogal ו e ele o leu como ‘humanidade/gentios’ em vez de Edom; ou, um escriba copiando um manuscrito em algum ponto leu אדם = humanidade como ‘Edom’ e adicionou a vogal ו para evitar confusão (mas cometendo um erro no processo), e é desta cópia contendo o erro que nosso TM veio até nós. Faça sua escolha.

*Manuscrito do Mar Morto

A segunda diferença é um pouco mais complicada. A palavra traduzida como ‘buscar’ na LXX (ἐκζητήσωσιν) traduz ירש que significa ‘possuir’. Este seria o único lugar onde a LXX traduz ירש como ‘buscar’. Vinte e nove vezes a LXX usa a palavra grega ‘procurar’ para traduzir a palavra hebraica דרשׁ, que difere apenas pela primeira letra, e setenta e três vezes ela a usa para traduzir a palavra בקשׁ, que tem apenas uma letra em comum. Alguns estudiosos sugerem que o tradutor interpretou mal דרשׁ (buscar) como ירשׁ (possuir), o que é possível especialmente se a cópia da qual ele estava trabalhando estava gasta, desbotada ou manchada. McLay diz que é menos provável que ele tenha lido errado como בקשׁ, pois isso exigiria que ele confundisse duas consoantes que não parecem muito semelhantes. No entanto, e é aqui que acho que se torna ainda mais interessante, precisamos saber que o sistema de escrita hebraica começou a mudar após o exílio babilônico do ‘paleo-hebraico’ para o estilo ‘bloco’ ou ‘quadrado’ aramaico ou assírio que ainda está em uso hoje (com algumas modificações adicionais). As cópias mais antigas do pergaminho contendo Amós (“o Pergaminho dos Doze Profetas”) provavelmente estariam em paleo-hebraico, e neste manuscrito as palavras בקשׁ e ירשׁ são muito mais semelhantes. O gráfico mostra essas palavras na escrita quadrada (bloco) que é usada agora, o paleo-hebraico em que Amós provavelmente foi escrito pela primeira vez, e a forma inicial da escrita quadrada que é encontrada nos Manuscritos do Mar Morto de Isaías para mostrar como pode ter sido escrito se o manuscrito aramaico já estava em uso. Embora ר e ק não sejam semelhantes na escrita quadrada, eles podem ser facilmente confundidos com o paleo-hebraico. Da mesma forma, ד י e ב também podem ser confundidos, especialmente se o texto estiver desbotado, borrado ou danificado. Muitos estudiosos entendem que o texto da LXX surgiu de uma versão diferente do texto hebraico por meio de uma leitura incorreta desse tipo.

Onde isso nos deixa? Podemos ver como um erro pode ter surgido em algum lugar e isso explica por que temos duas versões das palavras de Amós em nossas Bíblias. Mas qual deles é provável que seja original? Infelizmente, não há uma resposta fácil para isso e os estudiosos estão divididos sobre a questão. A maioria dos estudiosos tende a preferir uma versão ou outra dependendo de qual eles acham que melhor se encaixa no contexto e até que outro manuscrito antigo seja descoberto para lançar mais luz sobre o assunto, teremos que nos contentar com isso.

NOTAS

  1. ^ As antigas traduções gregas da Bíblia hebraica são popularmente chamadas de “a Septuaginta”, embora várias traduções diferentes tenham sido de fato designadas como tal. Provavelmente não há uma tradução que tenha uma reivindicação melhor para a designação do que as outras, então alguns estudiosos hoje em dia tendem a falar delas como “Septuagintas” (plural) e especificam o manuscrito específico ao qual estão se referindo, ou coletivamente como o Escrituras Judaicas Gregas. Frequentemente, quando os comentários se referem à “Septuaginta” (ou por sua abreviatura LXX), eles se referem ao texto e à tradução de Brenton (1844). Para uma boa visão geral dos estudos atuais sobre a Septuaginta, consulte R. Timothy McLay The Use of the Septuagint in New Testament Research (Grand Rapids: Eerdmans, 2003).
  2. ^ I. Howard Marshall, ‘Atos’ em G. K. Beale e D. A. Carson (eds.) Commentary on the New Testament Use of the Old Testament (Grand Rapids: Baker Academic, 2007), 589 [Publicado no Brasil: Edições Vida Nova, 2014, Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento (São Paulo: Edições Vida Nova, 2014)]
  3. ^ Gert J. Steyn Septuagint Quotations in the Context of the Petrine and Pauline Speeches of the Acta Apostolorum (Kampen, Netherlands : Kok Pharos, 1995), 252–3.
  4. ^ McLay, 23.
  5. ^ Marshall, 590.

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Tradução: Rafael Sales

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