Satanás foi um Belo Anjo chamado Lúcifer? (B. J. Oropeza)

Campus Teológico
10 min readApr 24, 2024

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B. J. Oropeza, Ph.D., University of Durham, é Professor de Estudos Bíblicos e Religiosos na Azusa Pacific University. Seus muitos trabalhos e interesses incluem os assuntos dos estudos paulinos, intertextualidade, Romanos, a correspondência aos Coríntios, análise sócio-retórica e um estudo em 3 volumes sobre Apostasia nas Comunidades do Novo Testamento. Ele é fundador da Seção de Intertextualidade no Novo Testamento da Society of Biblical Literature (SBL) e membro da Rhetoric of Religious Antiquity.

A crença mais popular sobre a queda de Satanás é baseada em Isaías 14:12 (KJ 1611): “Como caíste do céu, Ó Lúcifer, filho da manhã!” Essa passagem continua e afirma que Lúcifer tentou elevar seu trono sobre as estrelas e se tornar assim como o Altíssimo, mas Deus o lançou nas profundezas do abismo (Is 14:13–15).

Essa passagem constantemente é comparada com Ezequiel 28:11–19, onde supostamente se fala de Lúcifer como o rei de Tiro vivendo no Jardim do Éden. Ele foi um belo anjo querubim, mas Deus disse para ele “Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti” (28:17, ARC). Alguns até mesmo afirmam que Lúcifer era o chefe do coral dos céus, baseando-se no nome dos instrumentos listados na tradução da King James de Ezequiel 28:13. Assim, a teoria popular é de que Satanás, como Lúcifer, caiu e algum momento antes da criação.¹ Entretanto, a Bíblia nunca afirma diretamente em nenhum lugar que Satanás é Lúcifer. Uma leitura contextualizada de Isaías 14 e Ezequiel 28 levantas sérias dúvidas sobre a confiabilidade da popular teoria de que “Lúcifer é Satanás”.

O rei de Tiro foi um homem que agia como um deus (Ez 28). Não existem boas razões para igualar o rei de Tiro de Ezequiel nem com Satanás ou com Lúcifer. Na verdade, não faz nenhum sentido quando lemos que o Senhor (por meio de Ezequiel) denuncia o rei de Tiro: “sendo tu um homem, e não um deus” (Ez 28:2). Satanás não é nem um homem, nem um deus, mas o líder dos anjos caídos (Mt 25:41; Ap 12:7–9). Além disso, se essa passagem descrevesse a queda original, quando foi que Satanás foi lançado na terra e se tornou em cinzas perante os reis (28:17–18)?

Ezequiel 28 obviamente descreve aquilo que ela afirma descrever — o rei de Tiro. Ezequiel (25–32) denuncia várias nações antigas e seus reis, incluindo Amon, Moabe, Edom, Filistia e o Egito. Tiro é apenas uma das nações para as quais Ezequiel profetiza o julgamento. Ezequiel (26–28) parece empregar uma linguagem hiperbólica e sarcástica contra o rei, que representa a cidade de Tiro (28:4–5, 13, 15, 18; compare com a hipérbole em Ez 31, especialmente vv. 8–9). O rei, como uma metonímia para a cidade, é descrito com grande beleza e glória devido a riqueza da cidade, e comércio e acumulação de pedras preciosas. Assim, Ezequiel alude, de forma sarcástica, ao rei como que vivendo nas melhores circunstâncias e beleza: como um anjo querubim vivendo na presença de Deus e como Adão no maravilhoso Jardim do Éden (28:13–15). Isso torna a sua queda ainda mais vívida — sua cidade é reduzida a uma pilha de cinzas (v. 18). Deus acusa o rei não somente por seu orgulho mas por seu comércio desonesto (v. 18). Isso dificilmente poderia ser verdade para Lúcifer ou Satanás.

Alguns reconhecem que essa passagem se refere a um rei humano, embora mantenham que ela possui um sentido mais profundo onde descreve a origem de Satanás por causa da imagem do Jardim do Éden e a ideia de um anjo glorioso que se tornou mal.² Entretanto, a irrepreensibilidade do rei antes de seu pecado (Ez 28:15) pode não ser uma alusão ao estado original de pureza do querubim, mas, como muitos estudiosos notaram, ao de Adão (Ez 28:15; 28:13; compare Gn 2).³ No entanto, mesmo se admitirmos a possibilidade de que essa passagem implique a queda de Satanás, como determinaríamos quais versículos e palavras sugerem a queda de Satanás sem nos tornarmos arbitrários em nossa seleção? De qualquer forma, o texto não indica claramente em nenhum lugar que Satanás já foi um anjo chamado Lúcifer.

Lúcifer é o rei da Babilônia (Is 14). A palavra Lúcifer aparece na tradução da King James. A palavra no hebraico é hêlêl, vinda do verno “brilhar”, significando “o brilhante” ou “estrela da manhã”. A palavra Lúcifer é a tradução latina desta palavra. Ela foi introduzida no texto de Isaías 14:12 por meio dos textos dos pais da igreja como a Héxapla de Orígenes e a Vulgata de Jerônimo. A Bíblia Vulgata (que foi amplamente utilizada na igreja ocidental desde os anos 600 d.C.) também utiliza a palavra Lúcifer para a luz da manhã em Jó 11:17 e Salmo 109:3 (110:3 MT) e para os sinais do zodíaco em Jó 38:32. Eu não tenho conhecimento de alguém derivando Satanás a partir do Lúcifer nessas passagens!

O contexto de Isaías 14 explicitamente afirma que essa passagem é uma “ofensa contra o rei da Babilônia” (Is 14:4). O rei é metaforicamente descrito como um deus babilônico chamado hêlêl, que tenta alcançar os céus. Porém, ao invés de se tornar como o Altíssimo, o rei é humilhado para a cova como um simples homem (compare o orgulho de Nabucodonosor e sua subsequente humilhação por Deus em Dn 4; veja também Obadias 4). Isaías poderia estar utilizando um mito babilônico popular, mas ele faz uma reviravolta neste mito. Ele substitui o tema do anjo caído hêlêl com o rei da Babilônia. Esta técnica é como começar com uma rima “Humpty Dumpty” e então substituí-la com o nome do líder da nação por Humpty Dumpty.

O rei da Babilônia, não Satanás, está em vista, já que ele subjuga “as nações” (Is 14:12). É difícil entender como Satanás pode ter subjugado nações inteiras em sua queda original quando ainda nenhuma existia. Aquele que afirma ser como o Altíssimo em Isaías 14:14 também é aquele que será levado ao túmulo e é, por duas vezes, declarado como sendo um homem (14:15–17). Satanás talvez tenha assumido a forma de uma serpente, mas ele nunca foi um homem. Também devemos perceber que hêlêl foi levado a sepultura (Is 14:15; compara 14:12, 19–20). No Antigo Testamento a palavra sepultura frequentemente denota um lugar de enterro ou prisão (Sl 28:1; 30:3; Is 24:22; 38:18; Jr 37:16;Ez 31:14; Zc 9:11; compare com Ap 9:1). O contexto em Isaías 14 demonstra esse mesmo uso. Se essa passagem descreve a queda original de Satanás, como poede ele ter sido levado a sepultura quando posteriormente podemos encontrá-lo acusando Jó perante Deus nos céus (Jó 1–2; compare com Zc 3:1–4; Ef 2:2; 6:12)?

Assim como Ezequiel 28, alguns podem entender que enquanto Isaías 14:12 descreve o rei da Babilônia, ela também alude a queda original de Satanás como Lúcifer. Mas se lermos essa passagem sem sermos pré-condicionados a pensar que Satanás é Lúcifer, nós provavelmente não chegaríamos a conclusão de que Isaías 14 faz alusão a queda original de Satanás. Como então chegamos a afirmação dogmática de que Satanás foi um bom anjo chamado Lúcifer?

Não há nenhuma afirmação no Novo Testamento nem nos pais apostólicos de que Satanás já foi um belo anjo chamado Lúcifer. As tradições judaicas nem mesmo fazem uma conexão clara entre Satanás e Isaías 14, até cerca do ano 100 d.C. E como já vimos, tradições judaicas especulavam livremente sobre anjos e demônios.

Orígenes, o pai da igreja do terceiro século, foi um dos primeiros escritores a promover a teoria de Lúcifer como Satanás na igreja cristã (Orígenes, De Principiis 1.4–5; compare Prefácio 6; Hexapla Is 14:12). Ainda no século IV, no entanto, um bispo cristão ainda podia ser chamado de São Lúcifer, e seus seguidores, os luciferianos! Os pais da igreja que posteriormente popularizaram a noção de que Satanás já foi um bom anjo chamado Lúcifer incluem Agostinho, Pedro Lombardo e Tomás de Aquino (por exemplo, Agostinho De Genesi ad literem 3.10; Pedro Lombardo Sentences 2.6). De acordo com o erudito do Antigo Testamento John Oswalt, os primeiros expositores da Reforma não pareciam fazer uma conexão entre Satanás e Lúcifer em Isaías 14:12. Em sua obra-prima Paraíso Perdido (1667), John Milton conecta Satanás à queda de Lúcifer (1,80; 5,743). Hoje em dia, a teoria de Satanás como Lúcifer tornou-se uma “verdade do evangelho” sem um único fragmento de evidência bíblica convincente. Isso não é negar que Satanás pode ser um anjo caído, mas precisamos questionar nossa base para chamá-lo de Lúcifer.

NOTAS

  1. ^ Jeffrey Burton Russell, Lucifer: The Devil in the Middle Ages (Ithaca, N.Y./London: CornellUniversity Press, 1984), p. 66.
  2. ^ Outra passagem que é citada vez ou outra em suporte a teoria de Satanás/Lúcifer é 2 Coríntios 11:14. O contexto se refere a Satanás como um “anjo de luz” por causa de sua astuta habilidade de enganar. A passagem não diz nada sobre como ele caiu ou se ele era originalmente um anjo virtuoso e belo “portador de luz” chamado Lúcifer. Da mesma forma, Satanás caindo como “relâmpago” em Lucas 10:18 parece referir-se à rapidez de sua queda em relação ao ministério de Jesus de estabelecer o reino de Deus aqui na terra (compare Foerster, TDNT 1:505). É improvável que qualquer passagem tenha a intenção de aludir a Lúcifer em Isaías 14:12.
  3. ^ Veja, por examplo, Walther Zimmerli, Ezekiel 2: A Commentary on the Book of the Prophet Ezekiel Chapters 25—48, Hermeneia (Philadelphia: Fortress, 1983), p. 95.
  4. ^ Estudiosos sugeriram relatos paralelos de deuses caídos tanto da Grécia quanto do antigo Oriente Próximo. No mito grego Phaethon é filho de Eos, a estrela de Vênus. Eos dá à luz a “estrela da manhã” (eosphoros; compare com Is 14:12 LXX). A estrela da manhã tentou andar na carruagem de seu pai, o sol, através das nuvens. Mas Zeus, o rei dos deuses, o acertou no chão com um de seus relâmpagos. Ver John D. W. Watts, Isaiah 1–33 (Waco, Tex.: Word, 1985), p. 210. Os textos de Ras-Shamra da antiga Ugarit (2000 AEC) mostram Baal sentado no monte Sapon quando se levanta a questão se outra pessoa poderia sentar-se em seu trono. “Athtar, a estrela de Vênus, é proposto. Ele é, no entanto, muito pequeno para ocupar o trono e deve descer à terra e reinar como ‘deus de tudo’” (J. Gray, “Day Star”, em ISBE, 1:785). Esses relatos são semelhantes a Isaías 14, mas Isaías pode estar usando um paralelo mais claro do que temos acesso hoje.
  5. ^ A melhor explicação desse tipo é aplicar o princípio profético de Urzeit wird Endzeit (o tempo primitivo se torna o tempo do fim). A profecia às vezes alude a eventos passados, bem como a eventos futuros. (A prostituta da Babilônia em Apocalipse 17, por exemplo, parece ser uma alusão à antiga e futura Roma, bem como à antiga Babilônia.) Mas se aplicarmos esse princípio a Isaías 14, a passagem se assemelharia mais à futura queda do anticristo — pelo menos é um homem do que qualquer queda arcaica de Satanás. Em qualquer sentido específico, no entanto, esta passagem não se refere nem a Satanás nem ao anticristo. É melhor deixá-la retratando aquele que pretende retratar — o rei da Babilônia.
  6. ^ Alguns afirmam que 2 Enoque dá a primeira referência a Lúcifer como Satanás. Este documento judaico, no entanto, pode ter sido concluído no século VII d.C. Se este documento é baseado em um texto grego mais antigo do primeiro século, não sabemos se essa versão incluía a queda de Satanás. Veja John Burton Russell, Satan: The Early Christian Tradition (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1981), p. 130. O livro talvez tenha sido escrito em grego e latim por volta de 400 dC. M. D. Johnson, no entanto, sugere que o texto é baseado em uma versão hebraica mais antiga que pode datar de 100–200 d.C. (J. H. Charlesworth, ed., The Old Testament Pseudepigrapha [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1985], 2:252). 2 Enoque 29 afirma que “Satanael foi lançado do alto, junto com seus anjos” no segundo dia da criação. Ele foi um arcanjo que contemplou o impossível — colocando seu trono acima das nuvens, tornando-se igual àquele que mais tarde o expulsou do céu. Este texto provavelmente faz alusão a Isaías 14. No entanto, o nome do diabo aqui é Satanael, não Lúcifer. Satanael era o nome judaico para Satanás antes de sua queda (3 Apocalipse de Baruch 4.7–9). Ele perdeu a parte “-el” (“-Deus”) de seu nome quando caiu. Um segundo candidato possível para a mais antiga alusão à queda de Satanás em referência a Isaías 14 é “A Vida de Adão e Eva”. Ele, no entanto, não usa o nome Lúcifer (Adão e Eva 15:1–3; compare 12:1–2; 16:1). 1Enoque 86 e 88 pode retratar anjos caídos como estrelas caídas, semelhante a Apocalipse 9:1. Este é talvez o mais próximo que podemos chegar de uma teoria de Satanás=Lúcifer por volta do primeiro século. O estudioso do Antigo Testamento John D. W. Watts escreve: “É significativo que o relato da queda de Satanás (Apocalipse 12) não faça referência a Is 14” (Isaías 1–33, Word Biblical Commentary [Waco, Tex.: Word, 1985], página 212). É possível que Orígenes esteja aludindo a uma fonte judaica anterior, mas não tenho conhecimento de quaisquer cópias existentes de tal fonte que demonstrem claramente Satanás como Lúcifer. Orígenes parece responsável por primeiro popularizar a teoria de Lúcifer como Satanás entre os cristãos.
  7. ^ Veja F. L. Cross e E. A. Livingstone, eds., The Oxford Dictionary of the Christian Church, 2º. (Londres: Oxford University Press, 1974), pp. 841–42. Joseph Jensen e William Irwin no The New Jerome Biblical Commentary notam corretamente que “uma vez que alguns escritores patrísticos [pais da igreja] viram nesta peça [Is 14:12] um relato da queda de Satanás, Lúcifer veio a ser um nome para o diabo “ (The New Jerome Biblical Commentary, ed. Raymond E. Brown, J. A. Fitzmyer e Roland E. Murphy [Londres: Geoffrey Chapman, 1990], p. 239).
  8. ^ John N. Oswalt, The Book of Isaiah: Chapters 1— 39(Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1986), p.320.

Este trecho apareceu originalmente como Pergunta 41 em B. J. Oropeza, 99 Answers to Angels, Demons, and Spiritual Warfare (Downers Grove: IVP, 1997). Agora disponível como uma versão Kindle/download (www.amazon.com). Disponível em:

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Tradução: Matheus Ramos de Avila

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