As Origens do Pós-Liberalismo (Gary Dorrien)

Campus Teológico
18 min readAug 29, 2024

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Gary Dorrien foi professor associado de religião e deão da Stetson Chapel na Kalamazoo College quando esse artigo foi escrito. Seu livro The Word as Truth Myth: Interpreting Modern Theology foi publicado em 1997 pela Westminster John Knox.

Sumário

Esse é o primeiro de dois artigos sobre pós-liberalismo. O próximo artigo será “O Futuro do Pós-Liberalismo”. Aqui temos uma teologia que pretender não ser nem conservadora nem liberal, e oferece novas abordagens sobre a Escritura e sobre a Vida Cristã.

Atualmente, nenhuma perspectiva teológica possui um lugar de comando ou um impacto especialmente dominante. Várias teologias competem por atenção em um campo altamente pluralizado, e nenhuma teologia teve muito impacto público. Entretanto, um desenvolvimento significante e inescapável, foi o surgimento da “teologia pós-liberal”, uma grande tentativa de reviver o ideal da neo-ortodoxia de uma “terceira via” na teologia.

Por quase tanto tempo quanto a teologia moderna existe, esforços têm sido feitos para localizar uma terceira via entre o conservadorismo e o liberalismo. A ideia de uma terceira via era intrínseca a “teologia mediadora” de meados do século 19, que mesclava elementos confessionais, pietistas e liberais. Duas gerações depois, a neo-ortodoxia lançou apelos mais agressivos por uma terceira via. Enquanto insistia que não era seduzida pelo literalismo bíblico, Karl Barth começou sua dogmática descrevendo a tradição liberal de Friedrich Schleiermacher e Adolf von Harnack como “o plano de destruição da Teologia Protestante e da Igreja Protestante”. A “teologia da crise” de Emil Brunner, de uma forma diferente, também afirmava que tanto o liberalismo protestante quanto a ortodoxia protestante traíam os princípios da Reforma sobre a soberania e a liberdade da Palavra de Deus. Reinhold Niebuhr tomou um rumo diferente em direção ao mesmo fim, argumentando que o fundamentalismo está irremediavelmente errado porque considerava os mitos cristãos como literais, enquanto o cristianismo liberal estava irremediavelmente errado porque falhava em levar a sério os mitos cristãos.

Neo-ortodoxia era o termo “guarda-chuva” para diversas teologias profundamente diferentes. Ela foi abraçada por diversos pastores e teólogos no Estados Unidos que, em geral, tiraram sua teologia de Brunner ou de Niebuhr ao invés de Barth. A neo-ortodoxia americana nos anos 1940 e 1950 tipicamente significavam uma mistura da dogmática de Brunner, a ética teológica de Niebuhr e o academicismo escriturístico do movimento da teologia bíblica. Esse movimento, uma reação a perceptível esterilidade anterior, estudos puramente analíticos, enfatizavam os temas unificadores da Escritura e enfatizava os atos reveladores de Deus na história conforme descritos na Bíblia.

O movimento da neo-ortodoxia foi assustadoramente bem sucedido em reorientar o campo da teologia moderna. A linguagem bíblica de pecado, a transcendência e a Palavra de Deus recuperaram um lugar de proeminência nos discursos teológicos.

Mas um período de tempo notavelmente curto, a casa da neo-ortodoxia desabou. Durante a década de 1960, os gigantes da neo-ortodoxia morreram, as afirmações de James Barr acerca da singularidade da semântica bíblica desmantelaram a teologia bíblica, e Langdon Gilkey expôs a incoerência da linguagem de Deus da neo-ortodoxia. Gilkey demonstrou que, apesar de todas as suas condenações do liberalismo teológico, a neo-ortodoxia interpretava o significado dos “poderosos atos de Deus” bíblicos em termos essencialmente liberais. Gilkey mais tarde chamou a atenção para uma tendência secularizante na teologia — ele a chamou de “teologia da morte de Deus” — que foi liderada por ex-barthianos como William Hamilton e Paul van Buren. Pouco depois, as primeiras correntes da teologia da libertação surgiram na América Latina e nos EUA, fazendo com que a neo-ortodoxia parecesse abafada, provinciana e opressiva.

Embora as conexões entre os pós-liberais com a neo-ortodoxia não seja amplamente divulgada nos escritos dos pós-liberais, essas conexões são significativas. O movimento pós-liberal é essencialmente um projeto barthiano –um que, de certa forma, é mais profundamente influenciado por Barth do que pela neo-ortodoxia americana em seus dias gloriosos.

A teologia pós-liberal começou como um fenômeno centrado em Yale. Ela foi fundada pelos teólogos Hans Frei e George Lindbeck, que escreveram os textos fundadores do movimento e quem (após a morte prematura de Frei em 1988) treinaram os seus principais defensores. Figuras proeminentes no desenvolvimento da escola pós-liberal incluem teólogos formados em Yale como James J. Buckley, J. A. DiNoia, Garrett Green, Stanley Hauerwas, George Hunsinger, Bruce D. Marshall, William Placher, George Stroup, Ronald Thiemann e David Yeago. Um grupo, em geral mais jovem, de pós-liberais formados em Yale que atualmente contribuem com o desenvolvimento do pós-liberalismo inclui Kathryn Greene-McCreight, Serene Jones, David Kamitsuka, Ian McFarland, Paul McGlasson, Joe Mangina, R. R. Reno, Gene Rogers e Kathryn Tanner. Numerosos teólogos de diferentes formações acadêmicas compartilham importantes afinidades com o movimento pós-liberal; entre eles se incluem William Willimon, os ecumenistas evangélicos Stanley Grenz e Gabriel Fackre, o falecido teólogo batista James William McClendon Jr. e os teólogos britânicos Rowan Williams e David Ford.

O argumento fundacional dessa escola foi proposto por Frei em The Eclipse of Biblical Narrative (1974). Frei observou que as abordagens da Bíblia dos modernos conservadores e liberais, minam a autoridade da Escritura ao localizar o significado do ensino bíblico em alguma doutrina ou cosmovisão que é considerada como mais essencial do que a própria Escritura. Antes do Iluminismo, ele explica, a maioria dos cristãos liam a Bíblia, em geral, com um tipo de narrativa realística que contava a abrangente história do mundo. A coerência desta história tornava possível a interpretação figurada; certos eventos dentro e fora da narrativa da Escritura eram vistos como tendo prefigurado ou refletido os eventos bíblicos centrais. Judeus e cristãos deram sentido às suas vidas se vendo como relacionados e participando da história contada nas escrituras.

Frei argumenta que durante o Iluminismo essa percepção da Escritura como uma narrativa realística foi perdido. Porque a sua própria experiência racionalizada cada vez mais definia o que era “real”, teólogos buscaram compreender a Escritura relacionando a com a sua própria “realidade” (supostamente universal). Isto é, eles buscavam determinar a verdade dentro e sobre a Escritura traduzindo na linguagem que realmente importava, a de seu mundo. The Eclipse of Biblical Narrative ofereceu um resumo rico e detalhado sobre a forma em que os teólogos do século 18 e 19 negligenciaram o caráter narrativo da Escritura, mas fundamentalmente, conforme Frei argumenta, haviam duas principais estratégias por meio das quais os teólogos modernistas (e influenciados pelos modernistas) reconstruíram o significado das Escrituras. Liberais buscavam o verdadeiro significado da Bíblia no que é transmitido em verdades eternas sobre Deus e a humanidade, enquanto conservadores buscavam o verdadeiro significado da Bíblia em referências factuais.

Em ambos os casos, a prioridade da própria narrativa da Escritura estava sendo negligenciada. A Escritura não mais definia de maneira normativa o mundo em que os cristãos vivem; ao invés disso, a Bíblia se converteu em uma fonte de suporte para narrativas modernas sobre progresso ou outras normas doutrinárias. “Em todo o espectro teológico, uma grande reversão tomou conta”, declarou Frei. “Interpretação se transformou em uma questão de encaixar a história bíblica em outro mundo, com outra história ao invés de incorporar aquele mundo na história bíblica.”

Com a perda da Escritura como grande narrativa formativa, a Bíblia cada vez mais se tornou estranha à igreja. Seu significado se tornou decifrável apenas a uma elite acadêmica. Acadêmicos liberais buscaram verdades eternas que afirmassem a sua cultura na Escritura, e por outro lado, desconstruíram o texto canônico em fragmentos histórico-críticos. Conservadores e evangélicos fundamentalistas transformaram o texto em uma fonte material de proposições e desenvolveram uma harmonização extremamente artificial de declarações factuais conflitantes que criaram “soluções” internas não encontradas nas Escrituras.

Frei deu grande parte de sua atenção a variedades de liberalismo, mas seu veredito igualmente se aplica a grande parte dos liberais moderno e da teologia conservadora. “Ninguém que pretenda alguma forma de teologia ou de reflexão religiosa queria ir contra a aplicação ‘real’ do significado do texto bíblico, uma vez que ele já tenha sido declarado, mesmo que não se acredite nele ou em sua própria autoridade”, ele declarou. O significado “real” tornou-se totalmente determinante.

Os conservadores sustentavam que o significado literal de várias referências factuais na Escritura, e os liberais rebatizam que a ciência moderna e as investigações histórico-críticas negavam o sentido literal como uma possibilidade interpretativa. Em ambos os casos, a visão da Escritura como uma narrativa canônica foi abandonada.

As sementes da terceira via pós-liberal foram plantadas nessa descrição da interpretação bíblica. Frei enfatizou a primazia da narrativa da Escritura para a teologia. Seu colega George Lindbeck adicionou uma insistência sobre a primazia da linguagem sobre a experiência e uma teoria sobre religião como um meio cultural-simbólico. Se utilizando da análise de Ludwig Wittgenstein sobre a linguagem e cultura antropológica de Clifford Geertz, a principal obra de Lindbeck, The Nature of Doctrine (1984), ofereceu uma descrição das opções teológicas contemporâneas, reforçando e amplificando muito do argumento de Frei.

Lindbeck argumentou por uma compreensão “cultural-linguística” da religião como oposta às aproximações “proposicional-cognitiva” e “expressiva-experimental” que, conforme ele afirmava, haviam dominado a era moderna. Ele afirmava que teólogos liberais são quase sempre expressivas-experimentais; eles buscam fundamentar a linguagem religiosa em afirmações fundamentais sobre experiências de sentimento religioso, de valor moral ou algo semelhante. Grande parte dos teólogos conservadores são proposicionais-cognitivos; eles afirmam que declarações doutrinárias direta ou literalmente se referem a realidade. Lindbeck observou que, em sua ênfase na função da linguagem religiosa como informação proposicional sobre realidades objetivas, os teólogos conservadores tendem a confirmar a abordagem da religião adotada pela maioria dos filósofos analíticos anglo-americanos. A filosofia analítica normalmente assume que a linguagem religiosa é significativa apenas se fizer declarações universalmente válidas sobre questões de fato na forma de proposições.

Infelizmente para a filosofia analítica, nenhuma religião pode verdadeiramente ser compreendida nestes termos. Lindbeck afirmava que as tradições religiosas são historicamente moldadas e culturalmente codificadas, e são governadas por suas regras internas. Qualquer explicação sobre crenças religiosas que despreze esses fatores irá, inevitavelmente, distorcer a tradição religiosa em seu exame. No caso do cristianismo, ele observou, é a narrativa da Escritura que dá a forma ao mundo cultural-linguístico em que o corpo corporativo de Cristo expressa seus significados e busca seguir a Cristo. Doutrinas cristãs não devem ser compreendidas como proposições universalistas ou como interpretações de experiências religiosas universais. Doutrinas são muito mais parecidas com as regras gramaticais que governam a forma em que nós utilizamos a linguagem para descrever o mundo. A doutrina cristã identifica as regras em que os cristãos usam a linguagem confessional para definir o mundo social em que eles habitam.

Seguindo Wittgenstein, Lindbeck enfatizou a conexão entre “racionalidade” e o uso habilidoso de regras adquiridas. Ele afirmava que os crentes podem provar a racionalidade ou relevância de sua tradição religiosa (ou de qualquer outra tradição) apenas utilizando corretamente sua gramática interna: “A razoabilidade de uma religião é, em grande parte, uma função de capacidades assimilativas, e sua habilidade de proporcionar uma interpretação inteligível, em seus próprios termos, de diversas situações e realidades que seus adeptos venham a encontrar”.

O modelo de compreensão religiosa de Lindbeck não descarta a possibilidade da apologética — ao falar com pessoas que não compartilham o mundo linguístico do cristianismo. Ele descartou apenas o tipo de apologética que afirma que a razão possui prioridade sobre a fé. A lógica de vir a crer no cristianismo, ele afirmou, é como a de aprender uma nova linguagem. Argumentos racionais a favor das alegações cristãs se tornam possíveis apenas após alguém aprender por meio de um treinamento espiritual como falar a linguagem da fé cristã. Além disso, o significado da linguagem cristã somente pode ser encontrado na escritura. Ao invés de tentar traduzir a Escritura em categorias extra-escriturísticas, Lindbeck propôs reescrever a realidade “dentro da estrutura da Escritura”. Com essa aproximação, “é o texto, por assim dizer, que absorve o mundo, ao invés de o mundo absorver o texto”. Se os teólogos permitirem a história da Bíblia se tornar a sua própria história, ele argumentou, eles estariam menos preocupados com tornar o cristianismo relevante ao mundo não-cristão em termos não-cristãos.

Esse princípio igualmente se aplica às comunidades cristãs: “Comunidades religiosas provavelmente se tornarão mais relevantes a longo prazo enquanto não se preocuparem primeiramente com o que é prático ou relevante, mas se ao invés disso, se concentrarem com suas próprias perspectivas intratextuais e formas de vida”. Assim como indivíduos são salvos pela fé, não pelas obras, ele afirma, da mesma forma comunidades religiosas são salvas pela fé, não por seu sucesso ético-social.

Lindbeck alertou que ele não estava argumentando em favor de um afastamento da igreja de questões sociais, pois a fidelidade sempre trará bons frutos no reino social. Foi a religião bíblica que produziu a ciência moderna e a democracia e outros valores apreciados pela civilização ocidental. Mas se o mundo deve ser salvo da corrupção demoníaca sobre esses valores, ele afirmou, será necessário um reavivamento da religião bíblica para cumprir essa obra salvífica. O cristianismo é uma força mais redentora no mundo quando igrejas cristãs focam suas energias em construir comunidades cristãs formativas que estejam enraizadas em seus idiomas e nas práticas da fé bíblica.

Se segue que para Lindbeck, a catequese cristã é uma ênfase mais apropriada para as igrejas do que a diversas estratégias modernas para tornar o cristianismo razoável, atrativo e relevante. Ele demonstrou que, na maioria das vezes, os pagãos convertidos na igreja primitiva não absorveram o ensino cristão intelectualmente e somente então decidiram se tornar cristãos. Eles foram atraídos pelo o que eles viram na fé e na prática das comunidades da igreja primitiva; somente depois que eles vieram a entender melhor a fé, após um longo programa de catequese que os tornou proficientes em uma estranha gramática e forma de vida. Este é o modelo que uma igreja espiritualmente séria deveria buscar recuperar em uma era pós-cristã, Lindbeck sugeriu: “Quando ou se a descristianização reduzir o cristianismo a uma minoria pequena, eles precisarão, pelo bem de sua sobrevivência, formar comunidades que se esforçam, sem uma rigidez tradicionalista, a cultivar a sua língua nativa e a aprender a agir de acordo com a mesma”.

A escola de teologia fundada por Frei e Lindbeck enfatizou a centralidade da formação comunitária na narrativa da Escritura e a missão contracultural da igreja. Com a teologia liberal, a escola pós-liberal toma por certo que a Bíblia não é infalível e que a alta crítica bíblica é completamente legítima e necessária. Com a teologia evangélica, a escola pós-liberal enfatizou a primazia da revelação, a unidade do cânone bíblico e singularidade salvífica de Jesus Cristo. Em anos recentes, alguns evangélicos mostraram considerável simpatia pela escola pós-liberal (notadamente Stanley J. Grenz, Nancy Murphey, Roger Olson e Clarck Pinnock); outros evangélicos a tratam com respeito embora façam objeções contra ela (tais como Donald Bloesch e Alister McGrath).

Ao mesmo tempo, muitos antigos conservadores evangélicos alertaram que a teologia pós-liberal é a última manifestação da falecida neo-ortodoxia, que é mais perniciosa por sua aparente afinidade com os propósitos conservadores. Em um antigo julgamento negativo sobre Frei, Carl F. H. Henry resumiu o problema: a teologia narrativa cria uma separação entre a narrativa bíblica (que ela enfatiza) e a factualidade histórica (que ela menospreza). Além do mais, ao deixar de fundamentar suas afirmações sobre a Escritura em uma doutrina da inerrância bíblica logicamente anterior, os teólogos narrativos minam seus supostos propósitos de afirmar a unidade e a autoridade da Escritura. Teólogos narrativos não possuem uma doutrina da inspiração bíblica que seja substantiva, nem uma teoria da autoridade bíblica objetiva, nem um critério objetivo para estabelecer verdades religiosas, e apenas uma descrição parcial da unidade da Escritura. Além disso, Henry destaca que muito da Escritura não consiste de material narrativo, o que torna a categoria da narrativa insuficiente por si mesma para descrever a unidade canônica da Escritura. Quanto à alegação pós-liberal de evitar o subjetivismo experiencial da teologia liberal, Henry acusou que, ao elevar a narrativa sobre a factualidade, a teologia narrativa se torna incapaz de distinguir a verdade do erro ou o fato da ficção.

Essa crítica trouxe alguns pontos, alguns que foram bem colocados por outros mais simpáticos ao pós-liberalismo. Por exemplo, o teólogo de Harvard Ronald Thiemann, que foi aluno de Frei, objetou que o modelo cultural-linguístico faz com que discursos sobre o “texto” ocupem o lugar da conversa cristã sobre Deus; o acadêmico bíblico de Yale Brevard Childs rejeita a fala de Lindbeck de que o texto cria o seu próprio mundo. Essa forma de falar sobre a Escritura é enraizada nas práticas espirituais das igrejas litúrgicas, observou Childs, não é “a forma como a Bíblia de fato funciona na igreja” — neste caso, aparentemente significando as igrejas não litúrgicas

Frei nunca afirmou ter trabalhado afim de oferecer respostas satisfatórias para tais críticas, e Lindbeck também não afirmou ter feito. Mas os fundadores do pós-liberalismo lidaram com diversos destes problemas. Em uma resposta direta a Henry, por exemplo, Frei advertiu que termos como “verdade” e “referência” e “fato histórico”, nos quais Henry se baseava, são mais ambíguos do que muitas vezes se reconhece.

Além disso, o evangelicalismo racionalista de Henry resumiu a teologia de Lindbek como uma de um tipo cognitivo-proposicionalista. Para Henry, as metáforas e narrativas da Escritura carregam um significado como verdades religiosas apenas se elas forem reafirmadas em forma proposicional. Por este motivo, ele considerava as narrativas da Escritura como secundárias em importância com as doutrinas que a Escritura contém. Frei argumentou que esta não é uma forma bíblica de pensar. Embora a Bíblia obviamente contenha múltiplas formas literárias, ele observou, ela transmite significado e verdade principalmente por meio da narrativa. Doutrinas são redescrições conceituais de histórias bíblicas; elas surgem das histórias e apontam de volta para elas. Embora tais redescrições certamente sejam necessárias para a teologia, ele admite, elas não são as bases primordiais da teologia. A verdade bíblica é apresentada primariamente por meio de pedras.

Considere João 1:14: “E o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e verdade”. Como uma declaração doutrinária, ele observou, “o Verbo se fez carne” pode ser compreendida apenas por meio da história do evangelho. Seu significado religioso não é uma proposição independente; ele é compreensível apenas como sua sequência demonstrada na história narrada pelo evangelho sobre o ministério, morte e ressurreição de Jesus.

Frei não negou que a verdade bíblica constantemente é cognitiva ou que, de vez em quando, é expressa de forma proposicional na Escritura. Ele argumentou contra o racionalismo evangélico que está centralizado na afirmação de que a verdade somente pode ser expressa em formas proposicionais.

Assim como Barth, Frei defendia que muito da narrativa da Escritura é como uma história, sem a necessidade de ser histórico. O propósito das histórias do Evangelho é narrar a identidade de Jesus, ele argumentou. Por este motivo, muitos dos episódios nos evangelhos funcionam como anedotas ilustrativas. Elas nos mostram que tipo de pessoa Jesus foi. O teste de sua veracidade não é se incidentes particulares que estão descritos aconteceram, mas se eles narram fielmente a identidade de Jesus para nós. O mesmo princípio se aplica a outras narrativas na Escritura.

Dessa forma, para Frei (assim como para Barth), é um erro fatal para os cristãos sugerir que a arqueologia ou a crítica da forma ou qualquer outra disciplina crítica deve ser a juíza sobre o quão sério o leitor cristão devem considerar o testemunho da Escritura. O cristão habita o mundo narrativo da Escritura e vive por meio de seus significados. Ele não deve decidir se o testemunho da Escritura deve ser levado a sério com base na edição mais recente da Biblical Archeological Review. Para ele, o Deus descrito em Gênesis é real, quer os patriarcas tenham realmente vivido ou não.

Isso significa que a teologia narrativa ao estilo de Frei simplesmente abandona as questões sobre factualidade histórica? Se as narrativas bíblicas não derivam seu significado referindo-se a eventos históricos ou realidades ontológicas, como a teologia bíblica pode ser algo mais do que uma construção simbólica ou mítica? Se a teologia bíblica não reivindica nenhuma base histórica, a estratégia narrativa não reduz simplesmente a verdade bíblica a ser apenas uma boa história?

Muitos evangélicos seguiram as acusações de Henry de que Frei irremediavelmente abandonou realidades históricas. Outros argumentavam que Lindbeck também se contenta com uma estratégia intratextual meramente descritiva que não faz afirmações normativas de verdade.

Críticos também reclamaram que a escrita de Frei e Lindbeck é extremamente formal e que o estilo de prosa de Frei é evasivo e impenetrável. Alister McGrath confessou que ele foi “verbalmente derrotado pela prosa de Frei, que é a mais opaca que eu já fui obrigado a lidar”. Frei era aparentemente incapaz de escrever de uma maneira que não fosse altamente alusiva, elusiva e incômoda. Seu afiado senso intuitivo sobre as nuances e complexas interrelações entre argumentos era evidente para seus estudantes, mas o mesmo dom tornou dolorosamente difícil para ele se fazer claro ou descrever seus argumentos de forma ordenada. Como George Hunsinger apontou “A sintaxe torturada tantas vezes evidente em sua prosa parecia ser igualada apenas pela profundidade de discernimento que essa mesma sintaxe parecia ao mesmo tempo prometer e, ao mesmo tempo, tão irritantemente reter.”

A principal obra construtiva de Frei “The Identity of Jesus” (1975), resumia essas qualidades. O livro estava repleto de trancos e barrancos desconexos que amarravam seu argumento, quase que o estrangulando. Além disso, algumas das passagens mais lúcidas foram calculadamente escritas para não trazer conforto para seus leitores, especialmente os evangélicos. Um forte caso pode ser feito de que história cristã não é tão única assim, ele sugeriu: “esse sendo ocaso, eu não devo tentar avaliar a confiabilidade histórica da história do evangelho de Jesus ou argumentar sobre a verdade única da história em termo de verdade, ou de um núcleo factual nele. Ao invés disso, eu irei focar em seu caráter como uma história”. Adiante, ele afirmou que não conhecemos quase nada sobre o Jesus histórico fora das histórias do evangelho e que “é precisamente a qualidade parecida com a de uma ficção de toda a narrativa’ da paixão e ressurreição de Jesus que torna a sua identidade presente para nós.

Entretanto, Frei reconhece que as narrativas dos evangelhos por si mesmas não sustentam uma dicotomia afiada entre a história do evangelho e factualidade histórica. Em particular, ele notou que a questão sobre factualidade histórica é levantada forçosamente nas histórias da crucificação e ressurreição. Narrativas míticas sempre buscam sacralizar seus símbolos religiosos fundamentais, mas nos evangelhos Jesus insiste na singularidade insubstituível de sua pessoa e missão. Ele não simboliza nenhum tipo ou tema mítico, mas é apresentado como insubstituível. Por essa razão, observou Frei, as histórias da cruz e a ressurreição virtualmente forçam seus leitores a questionar se os eventos ali descritos de fato aconteceram. Em outras palavras, na história da cruz e da ressurreição, o elo entre o significado da história e o que Jesus fez é muito forte, enquanto que a história da mulher apanhada em adultério (João 8:1–11) é uma história verdadeira, quer ela tenha ocorrido ou não, porque ela nos mostra o tipo de pessoa que Jesus foi.

Tendo enfatizado que a mente humana deste lado da eternidade não pode compreender a natureza da ressurreição, Frei foi cuidadoso para não fazer declarações definitivas sobre o conteúdo da proclamação da Páscoa. Não podemos afirmar que conhecemos a presença de Cristo em suas aparições na ressurreição, advertiu ele. Em outro lugar, ele observou que esse era o problema de falar da ressurreição como um fato histórico.

“É claro que eu acredito na ‘realidade histórica” da morte e ressurreição de Cristo, se estas forem as categorias que iremos utilizar”, disse Frei. O problema é que a linguagem de “fatualidade histórica” não é teoricamente neutra e não merece ser absolutizada. “Houve um tempo em que não falávamos, como muitas pessoas tem falado em cerca dos últimos duzentos anos, sobre Jesus Cristo sendo ‘um evento histórico particular’’, ele observou. “E pode ser que mesmo os estudiosos não usem esses termos específicos tão casualmente e de maneira tão evidente por muito mais tempo. Em outras palavras, embora eu acredite que esses termos possam ser adequados, não acredito, como o Dr. Henry aparentemente faz, que eles são tão livres de teoria, tão neutros quanto ele parece pensar que são. Eu não acho que o conceito ‘probabilidade’ seja teoricamente neutro. Esses termos, talvez, em outras duas gerações. Nós não falávamos dessa maneira trezentos anos atrás.”

Afirmar que a ressurreição deve ser um “fato” ou “história” é fazer a história conter algo que oblitera as suas fronteiras. Se a ressurreição de fato aconteceu, ela é um evento sem analogia. ‘História’, como uma categoria, é muito pobre para contê-la, e as questões da historio crítica usual sobre a relativa probabilidade de diferentes explicações se tornam inúteis. Ao mesmo tempo, Frei reconheceu, a história dos evangelhos claramente faz afirmações que não são nada menos do que históricas. “Se me pedirem para usar a linguagem da fatualidade, então eu diria, sim, nesses termos, tenho que falar de um túmulo vazio. Nesses termos eu tenho que falar da ressurreição literal”

Perto do fim de sua vida, Frei refletiu que seu interesse pessoal no argumento de Lindbeck era muito profundo e exortou Lindbeck a não recuar em suas afirmações de verdade sobre o status de verdade da linguagem cristã. Frei viveu o suficiente para ver o surgimento de uma escola pós-liberal, à qual legou algumas questões vexatórias. A concepção pós-liberal da verdade cristã é meramente descritiva e evocativa? É suficiente para os teólogos dizerem que a verdade bíblica é a capacidade do texto de atrair os leitores para uma nova estrutura de significado que dá sentido à vida e ao mundo de alguém?

Na próxima postagem iremos abordar com maior profundidade essas questões e o possível futuro do pós-liberalismo.

Esse artigo foi publicado em The Christian Century, July 4–11, 2001, pp. 16–21. Copyright by The Christian Century Foundation; usado com permissão. Este material foi originalmente preparado para Religion Online por Ted e Winnie Brock.

Gary Dorrien. “The Origins of Postliberalism”. Disponível em:

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Tradução: Matheus Ramos de Avila

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