A História de Marcos (Francis J. Moloney)

Campus Teológico
16 min readOct 1, 2024

--

Francis J. Moloney, S.D.B., é Professor de Estudos Religiosos na Universidade Católica da América, Washington, D.C. Ele escreveu extensivamente sobre o Evangelho de Marcos, sobre a literatura Joanina (João e o Apocalipse), entre suas principais contribuições estão comentários sobre Marcos, João, Apocalipse: Mark: Storyteller, Interpreter, Evangelist (Hendrickson, 2004), Interpreting the Gospel and Letters of John: An Introduction (Eerdemans, 2017) e An Introduction to the Gospel of John (Yale, 2003 em conjunto com Raymond Brown).

No século 19, os acadêmicos concordaram que Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito. E como o mais velho, muitos acreditavam que ele poderia ser o melhor lugar para se encontrar um registro preciso da vida de Jesus. Mas após a explosão de um interesse inicial em Marcos como um historiador, os acadêmicos cada vez mais concordaram que Marcos não era nada mais do que um editor que de forma atrapalhada costurou histórias antigas. Rudolf Bultmann afirmou: “Marcos não dominou suficientemente bem o seu material para que alguém possa se arriscar em uma reconstrução sistemática”.¹ Esse ensaio se une às vozes que insistem que Marcos se arriscou “em uma reconstrução sistemática” e nos contou uma boa história.²

Constantemente se afirma que uma história bem-sucedida possui um bom começo, um bom meio e um bom final. A história de Marcos começa com uma confissão solene a respeito das boas novas de Jesus como o Cristo e Filho de Deus (Marcos 1:1). Então se segue uma introdução gradual de Jesus em sua história, por meio da palavra profética de Deus (v 2–3), João Batista (v. 4–8), culminando no testemunho de Deus em uma voz do céu (v. 9–11) e a vitória de Jesus sobre Satanás (v. 12–13). No meio do evangelho, Jesus questiona a seus discípulos quem eles acreditam que ele seja, e Pedro confessa: “Tu és o Messias” (8:29). No final, o leitor encontra a espetacular prova de que a história de Jesus não terminou com a sua morte, mas que ele ressuscitou. As mulheres veem a tumba vazia e ouvem a proclamação pascal de um homem jovem na tumba. Mas em um intrigante final para a história, elas não obedecem ao comando do homem jovem de informar os discípulos de que Jesus está indo adiante deles para a Galileia. Elas estão tão aterrorizadas que fogem sem dizer nada para ninguém (16:1–8).

O início, o meio e o final do evangelho de Marcos indicam que possivelmente ele era um bom contador de histórias.³ Mas ele nos deixa outros sinais de seu trabalho, que são o que podemos chamar de “marcadores textuais”. Eles oferecem aos leitores sinais de que o contador da história está “tramando alguma coisa”. Os marcadores textuais mais óbvios em uma narrativa são os sumários, onde o autor pausa para abrir uma nova sessão em sua história, ou apresentar alguma conclusão ou avançar para algum comentário crítico acerca dos eventos que ele acaba de reportar. Existem muitos sumários em Marcos (veja, por exemplo, Marcos 1:14–15, 39, 45; 3:7–12; 4:33–34; 6:6b, 53–56; 9:30–31; 10:1). Outros marcadores textuais podem ser a repetição. Por exemplo, existem dois milagres do pão em Marcos, em 6:31–44 e 8:1–9. As predições da paixão são encontradas três vezes, em 8:31, 9:31 e 10:32–34. Duas histórias contam a cura de um homem cego (8:22–26; 10:46–52). Outros marcadores textuais são a mudança da ação de um lugar para outro (uma mudança temporal na história), ou de um conjunto de personagens para outro (uma mudança no foco do autor sobre os personagens). O evangelho de Marcos possui muitos desses indicadores (veja, por exemplo, 1:35; 2:1; 2:23; 3:7; 4:35; 7:24, 31). A sugestão a seguir sobre a “trama” de Marcos se apoia em alguns desses marcadores textuais que indicam uma história cuidadosamente desenhada sobre Jesus.

TRAMANDO O EVANGELHO DE MARCOS

“Trama” tem sido definida, de uma forma útil, da seguinte forma: “A trama de uma obra dramática ou narrativa é a estrutura de suas ações, à medida em que estas são apresentadas e ordenadas para alcançar efeitos emocionais e artísticos específicos”. A trama do evangelho de Marcos não apenas gera efeitos emocionais e artísticos, mas a sua principal preocupação é a de comunicar uma mensagem sobre Jesus, o Cristo, o Filho de Deus (veja 1:1). Marcadores textuais enfatizam os pontos de virada nessa trama. “O início” da história é anunciado em 1:1, e ele continua do versículo 1 ao 13. A primeira aparição de Jesus em cena, proclamando a boa nova da impactante presença de Deus como rei (1:14–15), sinaliza um importante momento na história. O ponto central é destacado pela confissão de Pedro e o comando de Jesus que ele fique em silêncio (8:29–30). Esses eventos fecham a primeira metade do evangelho e é seguido da primeira predição da paixão (8:31), enquanto Jesus inicia sua jornada em direção a Jerusalém. A segunda metade do evangelho começou. O final da história apresenta a manhã após o sábado, enquanto as mulheres vão ungir o corpo do Jesus crucificado e descobrem a tumba vazia (16:1–8). Dessa forma podemos sugerir que claramente existem quatro marcadores textuais:

  1. O evangelho inicia (1:1);
  2. Jesus inicia seu ministério na Galileia (1:14–15);
  3. Jesus anuncia a sua jornada para Jerusalém, e pela primeira vez anuncia a sua vindoura morte e ressurreição (8:31);
  4. As mulheres descobrem a tumba vazia (16:1–8).

Essa cuidadosa ordenação de sucessão de eventos no mais antigo dos evangelhos é uma indicação de que a história como um todo está permeada pelo desejo do contador de histórias de proclamar algo sobre Deus, o Cristo e os seguidores de Jesus. Seja lá o que os primeiros leitores soubessem sobre a história da vida de Jesus de Nazaré, isso foi subvertido pela história de Marcos. A descrição da presença de Jesus na Galileia, sua singular jornada para Jerusalém para ser rejeitado, julgado, e crucificado, a ressurreição e o surpreendente silêncio das mulheres na tumba vazia, contados dessa forma, não eram familiares. A radical novidade da história de Marcos deve ser lembrada. É uma maneira original de contar eventos da vida de Jesus, e o contador de histórias deve receber os créditos por sua compreensão igualmente original que o motivou a contar a história dessa forma.

O DESIGN DA HISTÓRIA DE MARCOS

Com base nos marcadores textuais listados acima, sugiro uma ideia inicial do desenho literário do autor.

  1. Marcos 1:1–13 serve como um prólogo, proporcionando ao leitor uma boa parte das informações sobre o Filho Amado de Deus.
  2. De Marcos 1:14 a 8:30 as palavras e atos do ministério de Jesus cada vez mais nos apresentam a questão: Quem é este homem (veja 1:27, 45; 2:12; 3:22; 4:41; 5:20; 6:2–3; 48–50; 7:37)? Alguns o aceitam, outros são indiferentes, e muitos outros se opõem a ele, mas a questão por trás da história é: Ele pode ser o Messias? Em 8:29 Pedro, em nome dos discípulos, resolve esse problema ao confessar: “Você é o Messias”. As dúvidas chegaram a um fim. Essa sessão do evangelho pode ser apresentada como uma questão: “Quem é Jesus?” Entretanto, no último verso, Jesus averte a Pedro para que ele não conte para ninguém sobre ele ser o esperado Messias (8:30). Talvez a confissão de Pedro não contenha toda a verdade sobre quem é Jesus.
  3. Marcos 8:31 a 15:47 começa com a primeira predição sobre a paixão (8:31: “Então ele começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas e fosse rejeitado pelos líderes religiosos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos mestres da lei, fosse morto e três dias depois ressuscitasse). Jesus se prepara para uma jornada para Jerusalém. Ele irá sofrer, ser crucificado e ressuscitar nesta cidade. Pode-se perceber que essa parte da história forma a “segunda metade” da história de Marcos sobre Jesus. Marcos 1:14–8:30 deixam claro que Jesus é o Messias (8:29), mas em 8:30 emerge a sugestão de que isso não seja a verdade completa. A segunda metade da história demonstra que Jesus é o Messias que será revelado como o Filho de Deus em uma cruz, um sofredor e vindicado Filho do Homem (8:31; 9:31; 10:32–33; 13:26; 14:61–62; 15:39). Em 15:39 um centurião romano confessa: “Verdadeiramente esse homem era o Filho de Deus!” O Cristo sofredor verdadeiramente é o Filho de Deus. O mistério veio a ter um fim. Marcos 8:31–15:47 pode ser chamado de “O Sofredor e Vindicado Filho do Homem: Cristo e Filho de Deus”.
  4. Muitas questões levantadas pela história ainda não foram respondidas. Os discípulos fugiram (veja 14:50), e Jesus clamou: “Meu Deus, meu Deus, por que você me abandonou?” (15:34). Em 16:1–8 o leitor aprende que Deus não abandonou o seu Filho. Ele foi ressuscitado (veja 16:6). Mas a solução para o problema dos discípulos permanece no futuro. Eles devem ir para a Galileia; lá eles o encontrarão (v. 7). As mulheres, assustadas por tudo o que elas viram e ouviram, fogem e não dizem nada para ninguém (v. 7).

Marcos 1:14–8:30

Um exame atento demonstra que os marcadores indicam que 1:14–8:30 e 8:31–15:47 podem ser ainda mais subdivididos. A primeira metade do evangelho (1:14–8:30). Estabelece relacionamentos e levanta questões a respeito da pessoa de Jesus. Mas o evangelho de Marcos não é somente sobre Jesus, o Cristo e Filho de Deus (1:1, 11). Ele igualmente é sobre o desafio de “seguir” um sofredor Filho do Homem para Jerusalém e além, um tema que irá dominar a segunda metade da história (8:31–15:47), mas que não está completamente ausente em 1:14–8:30. Em três ocasiões em 1:14–8:30 o contador de histórias diminui seu ritmo acelerado para resumir o ministério de Jesus até então. Esses sumários da atividade de Jesus não podem ser facilmente amarrados a algum lugar ou momento. Eles oferecem, de uma forma geral, ilustrações de sua atividade (veja 1:14–15; 3:7–12; 6:6b). O evangelho de Marcos contém outros resumos similares sobre o ministério de Jesus (veja, por exemplo, 1:39, 45b; 4:33–34; 6:53–56; 9:30–31; 10:1). Entretanto, o que é único sobre as descrições gerais sobre o ministério de Jesus em 1:14–15, 3:7–12 e 6:6b é que cada um desses resumos é seguido de um material que lida com os discípulos e o discipulado (1:16–20; 3:13–19; 6:7–30). Os resumos e o relato que os acompanham sobre a relação de Jesus com seus discípulos é seguido por uma série de episódios em que três públicos diferentes respondem às palavras e ações de Jesus. Ao fim de cada episódio, uma decisão sobre Jesus é tomada. Duas dessas decisões são negativas (3:6 [os fariseus e os herodianos]; 6:1–6 [o povo de sua cidade natal] e a terceira é erro de compreensão (8:29 [Pedro, respondendo em nome dos discípulos]).

Os três resumos que conduzem diretamente às passagens que tratam dos discípulos e concluem com uma resposta a Jesus indicam a escrita cuidadosa de Marcos de 1:14 a 8:30. As três seções se desdobram da seguinte forma:

  1. Jesus e os líderes de Israel (1:14–3:6). O primeiro resumo principal aparece em 1:14–15: “Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia, proclamando as boas novas de Deus. “O tempo é chegado”, dizia ele. ‘O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!’”. Esse resumo é seguido por uma descrição do chamado dos primeiros discípulos (1:16–20). Jesus então exerce o seu ministério na Galileia, principalmente em Cafarnaum (1:21–26), até que os líderes políticos e autoridades religiosas respondem acerca ele: “Então os fariseus saíram e começaram a conspirar com os herodianos contra Jesus, sobre como poderiam matá-lo” (3:6).
  2. Jesus e sua nova família (3:7–8:6:6a). O resumo do ministério de Jesus na Galileia segue em 3:7–12. Ele conclui: “Pois ele havia curado a muitos, de modo que os que sofriam de doenças ficavam se empurrando para conseguir tocar nele. Sempre que os espíritos imundos o viam, prostravam-se diante dele e gritavam: ‘Tu és o Filho de Deus’. Mas ele lhes dava ordens severas para que não dissessem quem ele era” (3:10–12). Esse resumo nos conduz até a descrição de Jesus instituindo os Doze (3:13–19). Mas o seu ministério encontra oposição de sua família e de Israel (3:20–30). Ele estabelece novos princípios para se pertencer a sua família (3:31–35) e ensina por meio de parábolas (4:1–34) e faz uma série de milagres maravilhosos (4:35–5:43). E quando Jesus retorna para sua cidade natal, o seu próprio povo o rejeita: “Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Não estão aqui conosco as suas irmãs?” E ficavam escandalizados por causa dele” (6:3). E Jesus “ficou admirado com a incredulidade deles” (6:6a).
  3. Jesus e seus discípulos (6:6b-8:30). Rejeitado em sua cidade natal, o ministério de Jesus na Galileia é resumido “Então Jesus passou a percorrer os povoados, ensinando” (6:6b). Então Jesus envia os Doze em missão que é paralela a sua (6:6b-13). A narrativa continua, marcada por uma crescente hostilidade entre Jesus e os judeus, especialmente em seu conflito com os fariseus (veja 7:1–23). Seus discípulos, sua nova família, também se torna mais envolvida com o seu ministério (veja 6:7–13, 30–44; 8:1–10). Essa sessão chega ao fim quando o próprio Jesus questiona a pergunta que está escondida por trás da narrativa desde 1:14: ““Quem o povo diz que eu sou?” (8:27) “Quem vocês dizem que eu sou?” (8:29). Pedro responde: “Você é o Messias” (v 29). O leitor, que aprendeu isso com o contador de histórias em 1:1, sabe desde o início que Jesus é o Cristo. A questão “Quem é Jesus?” já foi respondida. E de alguma forma Pedro está correto, mas as palavras de Jesus para seus discípulos (“eles”) soam como um alarme, e abre as portas para a segunda parte do evangelho: “Jesus os advertiu que não falassem a ninguém a seu respeito” (8:30).

Marcos 8:31–15:47

A ordem de silêncio de Jesus em 8:30 fecha a primeira metade da história e aponta para a segunda metade, que se inicia com a primeira predição, falando abertamente, de sua futura morte e ressurreição em Jerusalém (8:31). Marcadores textuais por todo 8:31–15–47 apontam para uma articulação tripla do Filho do Homem, Messias e Filho de Deus sofredor e finalmente vindicado. Mudanças óbvias de lugar, personagens e situações ocorrem nesta segunda metade da história.

  1. Jesus e seus discípulos em jornada para Jerusalém (8:31–10:52). A jornada de Jesus para Jerusalém foca fortemente em seu ensino sobre a sua vindoura morte e ressurreição (8:31; 9:31; 10:32–34) e suas instruções para seus discípulos, cada vez mais vacilantes.
  2. Os finais em Jerusalém (11:1–13:37). Jesus chega em Jerusalém (11:1–11). faz com que todas as práticas do templo tenham um fim (11:12–24), encontra e silencia as autoridades religiosas de Israel (11:27–12:44) e profetizou o fim da Cidade Santa e o mundo (13:1–37).
  3. A Paixão e a morte de Jesus (14:1–15:47). O ministério chega ao fim enquanto Jesus aceita e sofre sua paixão e morte.

O leitor percebe que o contador de histórias desenhou a primeira metade do seu evangelho para responder à questão “Quem é Jesus? A segunda metade é desenhada para responder: “o sofredor e vindicado Filho do Homem, o Cristo e Filho de Deus”. Entretanto, essas duas metades da trama se sobrepõem. Unidades narrativas não são separadas por paredes de cimento. Uma flui para dentro da outra, relembra questões que já foram mencionadas e sugere outros temas que ainda estão por vir. A confissão de fé de Pedro em Marcos 8:29 pode marcar o fim do “Mistério do Messias”, mas o tema da “cegueira” emerge em 8:22–26 na estranha história do homem cego em Betsaida, que tem a sua visão restaurada em estágios. Esse tema será resumido em 10:46–52, onde é relatada mais uma história de um homem que apareceu: a história do cego Bartimeu. Entre essas duas histórias de milagres onde homens cegos são curados, Jesus fala sobre a vindoura morte e ressurreição do Filho do Homem (veja 8:31; 9:31; 10:32–34), algo que esteve oculto nos eventos descritos em 1:14–8:30 (veja 3:6; 7:14–29; 8:11–15). Após cada uma das predições da paixão, Jesus instrui discípulos cada vez mais ignorantes, que não querem ou não podem entender o que significa segui-lo (veja 8:32–33; 9:33–37; 10:36–45). Uma acusação anterior de cegueira volta ao jogo. Após a segunda multiplicação dos pães e dos peixes (8:1–9), Jesus pergunta a seus discípulos: “Ainda não compreendem nem percebem? O coração de vocês está endurecido? Vocês têm olhos, mas não veem? Têm ouvidos, mas não ouvem?” (8:17–18). Este é apenas um exemplo da capacidade de Marcos de se sobrepor, de olhar para frente e de olhar para trás, enquanto conta sua história.

Marcos conduz leitores que já estão familiarizados com a história por meio de uma nova narrativa que transforma o seu tão conhecido final. Marcos enfrentou um problema declarado cerca de vinte anos antes de seu Evangelho aparecer: “Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte que a força do homem” (1 Coríntios 1:22–25). Marcos também tenta resolver o escândalo da cruz por meio de uma história que começa como “a boa notícia” de que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus (1:1, 11), e termina com um grito vindo de uma cruz e uma morte agonizante, um túmulo vazio e uma mensagem de Páscoa que não é entregue (15:33–16:8). Uma história de Cristo e do Filho de Deus que termina desta forma é uma repetição narrativa da mensagem paulina: “Porque a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana” (1 Cor 1:25).

Um Mapa

A seguinte apresentação “esqueleto” da estrutura narrativa do Evangelho é apenas uma breve lista dos títulos que já descobrimos. Apenas um pessoal e/ou a leitura partilhada do próprio Evangelho pode nutrir uma compreensão mais plena do modo como a história se desenrola. Somente uma leitura pessoal e/ou compartilhada do próprio evangelho pode nutrir uma compreensão mais plena do modo como a história se desenrola. O que se segue é algo do “esqueleto” da história do Evangelho de Marcos, um tipo de roteiro que um leitor de primeira viagem pode olhar ocasionalmente, para ver onde ele ou ela está em qualquer momento ou lugar específico durante a jornada através da história.

  1. Prólogo: O início (1:1–13).
  2. Quem é Jesus? (1:14–8:30).
    2.1. Jesus e os líderes de Israel (1:14–3:6).
    2.2. Jesus e sua nova família (3:7–6:6a).
    2.3. Jesus e os discípulos (6:6b-8:30).
  3. O sofredor e vindicado Filho do Homem: Cristo e Filho de Deus (8:31–15:47).
    3.1. Da cegueira para a visão (8:31–10:52).
    3.2. O simbólico fim de Israel e do mundo (11:1–13:37).
    3.3. A crucificação do Filho do Homem, Cristo e Filho de Deus (14:1–15:47).
  4. Epílogo: Um novo começo (16:1–8).

Devo concluir com um aviso. Tendo descoberto esse mapa, a jornada a partir daqui não será fácil. Existem lugares no Evangelho de Marcos onde o leitor pode achar difícil de acompanhar a lógica do movimento de um evento para o outro. Estamos acostumados com histórias que fluem suavemente, e tendemos a julgá-las de acordo com a habilidade do autor de conduzir gentilmente o leitor de um episódio para o próximo. Uma transição tão fácil nem sempre é o caso no Evangelho de Marcos. Por exemplo, em 9:42–48, uma série de ditos de Jesus, que talvez originalmente fossem independentes entre si, foram colocados lado a lado com base na repetição das mesmas palavras nesses ditos (“fizer tropeçar” [veja v. 42, 43, 45, 47] e “sal” [veja v. 49, 50]). Mas o elo entre esses ditos é difícil de ser traçado, e é preciso forçar a imaginação para seguir a lógica dos v. 42–48. Esses momentos de obscuridade na narrativa indicam o respeito que os primeiros escritores da igreja cristã tinham pelas tradições que chegaram até eles. Marcos era um escritor criativo, mas ele respeitava as palavras e acontecimentos que recebeu da vida de Jesus. A história de Marcos não deve ser julgada pelos critérios que nós usamos para julgar um romance agradável.

As tensões na narrativa devem ser resolvidas pela aplicação de dois princípios. Em primeiro lugar, precisamos entender que Marcos, o contador de histórias, tentou escrever um relato do ministério, morte e ressurreição de Jesus que comunicasse de forma coerente o que ele queria dizer aos seus leitores originais. Nós estamos histórica, cultural e até religiosamente distantes desses leitores originais. Devemos deixar-nos desafiar pela estranheza deste texto antigo. Em segundo lugar, cada leitor se esforça “mesmo que inconscientemente, para encaixar tudo num padrão consistente”.¹⁰ Inevitavelmente, um leitor traça ligações literárias e teológicas através do Evangelho que podem ser julgadas como o esforço desse leitor em particular para impor o seu padrão consistente. Essa é uma parte inevitável e perfeitamente aceitável do processo de leitura e audição. É verdade que, em alguns aspectos, moldamos o significado daquilo que lemos à luz das nossas próprias experiências e compreensão.

Mas o texto também nos molda. É o respeito e a admiração por um texto que tem sido lido repetidas vezes por muitos indivíduos cristãos e na vida da igreja cristã que inspira o nosso esforço para compreender a mensagem do Evangelho de Marcos. Apesar de Bultmann, Marcos era mestre em seu material e o usou para contar uma história impressionante que resistiu ao teste do tempo. É nossa responsabilidade cristã sermos seduzidos pela história marcana de Jesus e seus discípulos.

NOTAS

  1. ^ Rudolf Bultmann, History of the Synoptic Tradition, trans. J. Marsh (Oxford: Blackwell, 1963) 350
  2. ^ Uma boa introdução a esta “mudança de direção” na leitura do Evangelho de Marcos é David M. Rhoads, Joanna Dewey e Donald Michie, Mark as Story: An Introduction to the Narrative of a Gospel, 2ª ed. (Minneapolis: Fortress, 1999).
  3. ^ Não podemos ter certeza de quem exatamente “Marcos” poderia ter sido, mas parece que o autor provavelmente tinha esse nome, e continuarei a me referir a ele como “Marcos”. Sobre isso, veja Francis J. Moloney, Mark: Storyteller, Interpreter, Evangelist (Peabody, MA: Hendrickson, 2004) 3–18.
  4. ^ M. H. Abrams, A Glossary of Literary Terms, 5th ed. (New York: Holt, Rinehart & Winston, 1988) 139.
  5. ^ Veja o importante ensaio de Eduard Schweizer, “Mark’s Theological Achievement,” em The Interpretation of Mark, ed. William Telford (Philadelphia: Fortress, 1985) 42–63.
  6. ^ Para esta proposta, que muitos seguiram, veja Schweizer, “Mark’s Theological Achievement,” 46–54.
  7. ^ Para uma extensa consideração deste fenômeno no Evangelho de Marcos, veja Joanna Dewey, “Mark as Interwoven Tapestry: Forecasts and Echoes for a Listening Audience,” Catholic Biblical Quarterly 53 (1991) 225–236; Elizabeth Struthers Malbon, “Echoes and Foreshadowings in Mark 4–8: Reading and Rereading,” Journal of Biblical Literature 112 (1993) 211–230.
  8. ^ Sobre Marcos 16:1–8 e o fracasso das mulheres, veja Francis J. Moloney, The Gospel of Mark: A Commentary (Peabody, MA: Hendrickson, 2002) 239–254, e mais teologicamente, Moloney, Mark: Storyteller, Interpreter, Evangelist, 191–285.
  9. ^ Para minha tentativa de “ler toda a história”, veja Moloney, The Gospel of Mark, e Moloney, Mark: Storyteller, Interpreter, Evangelist, 59–121.
  10. ^ Wolfgang Iser, The Implied Reader: Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978) 283.

Francis J. Moloney. The Markan Story. Word & World Volume 26, Number 1 Winter 2006. Disponível em:

https://wordandworld.luthersem.edu/wp-content/uploads/pdfs/26-1_Mark/The%20Markan%20Story.pdf

Nosso propósito é apresentar vozes diferentes para o diálogo cristão. Focamos na unidade e na diversidade, queremos que todos participem da mesa do Senhor, mesmo que vejam várias coisas de formas diferentes. Nem sempre os pontos de vista apresentados refletem as posições dos editores e tradutores!

Siga nossas Redes Sociais:
Instagram
Facebook
Twitter

Tradução: Matheus Ramos de Avila

--

--

Campus Teológico

O Campus tem como fundamento a diversidade na unidade cristã. Existimos para encorajar o diálogo na igreja de Cristo.